Ficámos em choque a ver os cossacos percorrerem a multidão até ao fim e em seguida, como uma grande águia, voltarem para trás. Ao verem que não tínhamos fugido, foi dada uma ordem. Num rápido movimento, os cossacos desembainharam as chachki - as suas famosas espadas - e galoparam pelo meio de nós ainda mais depressa do que antes.
- Gik! Gik! - gritavam.
Era uma visão deslumbrante, aqueles brutos a cavalo, o metal prateado das suas lâminas a brilhar ao sol dourado de Inverno. Afastámo-nos ainda mais para o lado e, como tal, não houve de novo qualquer incidente, quando eles passaram aos gritos e a brandirem as suas espadas. Atravessaram a pequena ponte e desapareceram atrás da linha de soldados.
De imediato, quase instintivamente, a grande maioria de nós, muitos milhares, voltou a inundar a rua como uma torrente a cair num vazio. O meu coração batia como uma locomotiva, e, embora eu soubesse que devia levar a minha mulher grávida para longe dali, não fui capaz de me conter. Éramos bons, éramos poderosos, nós, trabalhadores, tão desejosos de uma vida boa, e de repente demos os braços, lado a lado, unidos no nosso desespero. O canto irrompeu de todos nós - não me recordo da canção, era algo religioso, com certeza -, e, mais depressa do que nunca, investimos, os que vinham atrás a empurrarem-nos para a frente. Quando estávamos a menos de duzentos metros da linha de soldados ajoelhados, ouvi o corneteiro mandar disparar. Mas nada aconteceu. Ouvi-o de novo, aquele som no ar rarefeito do Inverno. Depois uma terceira vez, mas escusadamente, pois éramos todos irmãos e irmãs, soldados e trabalhadores. Por fim ouvi o grito estridente de um oficial a ordenar aos seus homens que disparassem sobre nós. E eles abriram fogo, o estalido seco das balas a fender o ar. Mas as espingardas que tinham estado apontadas para nós, encontravam-se nessa altura levantadas para os céus, disparando bem alto. Essa foi a primeira rajada. Depois veio outra ordem, e a segunda rajada também foi para o ar. E, não sei como, nessa altura já estávamos a correr, a reunirmos força e coragem, os nossos ícones religiosos e faixas e a imagem do czar bem erguidos. E lembro-me de olhar para os soldados ajoelhados, de ver o medo nos seus rostos jovens. Eram rapazes, trazidos de alguma caridade da província, talvez Pskpv. Rapazes apavorados que, confrontados com esta multidão, baixaram depois as armas e, desta vez obedecendo às ordens, fizeram pontaria à queima-roupa.
De novo, aquele estalido sexo, uma e outra vez.
Um grito de dor inacreditável elevou-se da multidão, unido a princípio, depois destroçado num grito aqui, noutro ali. Um homem menos de dez passos à minha frente caiu de repente no chão, a sua faixa religiosa tombando e rasgando-se aos pedaços sob os pés. Tentei parar, mas não pude, tão grande era a força da massa atrás de nós. Ao olhar para o padre Gapon, vi o horror nos seus olhos e em seguida vislumbrei dois dos seus guarda-costas, os que estavam à frente dele, a tropeçarem e a caírem. E, mesmo em cima da minha Shura, algo explodiu num milhão de pedaços e ela gritou...gritou, quando o retrato do Czar-Batuchka foi crivado de balas.
-Shura! - gritei para o céu.
Houve outra rajada de balas, quando os soldados dispararam na nossa direcção, e todos nos atirámos ao chão como um só, homem em cima de mulher, em cima de avô, em cima de criança. Estendido, tentei enterrar-me na neve, quando os tiros foram disparados uma e outra vez, até os carregadores ficarem vazios.
Finalmente, as armas silenciaram-se. Durante um breve momento, nada aconteceu. Depois surgiu uma coisa horrível, gritos e soluços à minha volta. Levantando a cabeça, olhei em volta e vi um tapete de cadáveres. Uma menina gritava aos céus, enquanto estendia as mãos para a mãe espezinhada. Um velho tentou levantar-se, tropeçou e caiu novamente. Voltando-me e olhando para trás, vi muitos de nós a fugirem, metendo-se pelas ruas laterais e a correrem para salvar as próprias vidas.
Mas a minha querida mulher estava ali deitada, virada para baixo e ao alcance da minha mão, e toquei nela, gritando:
- Shura! Shura! Anda, temos de fugir! Levanta-te!
Pus-me em pé o melhor que pude e puxei-a pelo braço. Mas porque não fazia ela qualquer movimento, porque não tentava fugir? Porque não se levantava?
- Shura! - gritei. - Shura, levanta-te!
Foi nesse momento, claro, que vi que a neve sobre a qual a minha querida mulher estava deitada já não era branca. Não, era de um carmesim quente e fumegante, e ela estava deitada ali em cima, num mar vermelho de neve que crescia rapidamente, e então dei-me conta de que também eu estava de pé na poça funda do seu sangue.
E, atrás de mim, um homem chorava como uma criança, balbuciando:
- Deus abandonou-nos e também...também o czar!
"A Noiva Romanov" é o terceiro romance do autor Robert Alexander e, à semelhança das suas obras anteriores ("The Kitchen Boy - Os últimos dias dos Romanov" e "A Filha de Rasputine") faz um retrato fictício dos derradeiros anos da Rússia Imperial. O livro foi publicado em 2008 e os seus acontecimentos são contados na primeira pessoa pela grã-duquesa Isabel, irmã da imperatriz da Rússia, e por Pavel, um operário moscovita que perde a mulher no Domingo Sangrento e que se torna revolucionário.