O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald



Ás nove horas da manhã de um dia, em fins de Junho, o aparatoso automóvel de Gatsby apareceu, sem eu contar, a subir aos solavancos o pedregoso caminho de acesso à minha casa e disparou uma melodiosa buzinadela em três notas. Era a primeira vez que me visitava, apesar de eu já ter ido a duas festas dele, feito frequente uso da sua praia privativa.
- Então, bom dia, meu velho! Como você vai almoçar hoje comigo, pensei que era mais lógico irmos juntos no carro.
Equilibrava-se de pé, apoiado no tablier do carro com essa desenvoltura do movimento tão peculiar aos americanos - que provém, suponho eu, da ausência de trabalhos pesados na juventude mas, mais do que isso, da graça natural dos nossos esporádicos exercícios nervosos. Esta qualidade ressaltava constantemente da sua convencional maneira de ser sob a forma de inquietude. Nunca estava completamente parado; havia sempre nele um pé a bater ou uma mão a abrir e a fechar de impaciência.
Viu-me a olhar com admiração para o seu automóvel.
- É lindo, não é, meu velho? - Saltou para fora para me deixar ver melhor. - Ainda não o tinha visto?
Já o tinha visto. Toda a gente o tinha visto. Era de uma cor de creme-vivo, a brilhar de niqueis por todo o lado, cortando aqui e além, no sentido do seu monstruoso comprimento, de triunfais protuberâncias de chapeleiras, lancheiras, caixas de ferramentas e pára-brisas em socalcos labirínticos que reflectiam uma dúzia de sóis. Sentados por detrás de muitas camadas de vidro numa espécie de estufa de couro verde, partimos para a cidade.
Tinha falado com ele talvez uma meia dúzia de vezes no mês anterior, e descoberto, para meu desapontamento, que ele pouco tinha a dizer. Assim, a minha primeira impressão acerca dele, a de que era uma pessoa de certa categoria social indefinida, tinha-se desvanecido gradualmente e ele tornara-se muito simplesmente o proprietário de uma requintada «estalagem» mesmo ao lado da minha casa.
E veio então este desconcertante passeio. Ainda nós não tínhamos chegado à aldeia de West Egg e já Gatsby começava a deixar inacabadas as suas elegantes frases e a dar palmadas algo indecisas no joelho das calças do seu fato cor de caramelo.
- Olhe cá, meu velho - irrompeu inesperadamente -, afinal qual é a sua opinião a meu respeito?
Um pouco perturbado, dei início às evasivas generalidades que uma pergunta destas merece.
- Bem, vou então contar-lhe alguma coisa da minha vida - interrompeu ele. - Não quero que fique com a impressão errada que forçosamente causa todas as histórias que por aí se contam a meu respeito.
Estava, portanto, consciente das bizarras acusações que condimentavam a conversa nos seus salões.
- Juro-lhe por Deus que o que vou dizer-lhe é a pura verdade. - Ergueu subitamente a mão direita para o céu, a invocar o testemunho e a justiça divinos. - Sou o único descendente vivo de uma abastada família do Middle West. Fui criado na América, mas educado em Oxford, porque foi aí que, durante muitos anos, todos os meus antepassados foram educados. É tradição de família.
Olhou-me de soslaio - e percebi então porque é que Jordan Baker estava convencida de que ele mentiu. A frase «educado em Oxford» saiu-lhe à pressa, imperceptível ou engasgada, como se já o tivesse afligido antes. E, com esta dúvida, todas as suas declarações caíram por terra e fiquei a matutar se, no fim de contas, não haveria mesmo algo um pouco sinistro acerca dele.
- De que parte do Middle West? - perguntei casualmente.
- São Francisco.