O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

sábado, 6 de agosto de 2011

Cândido - Voltaire


Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um segredo infalível para impedir a terra de tremer.
Tinham consequentemente aprisionado um biscainho, acusado de ter casado com a sua comadre, e dois portugueses que, ao comerem um frango, tinham posto de parte o toucinho. Depois do jantar vieram amarrar o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado, o outro por ter escutado com ares de aprovação. Ambos foram conduzidos em separado para compartimentos de extrema friagem, nos quais o sol nunca incomodava ninguém. Oito dias passados, ambos foram vestidos de sambenitos e adornaram-lhes as cabeças com mitras em papel. A mitra e o sambenito de Cândido estavam pintados com chamas caídas e diabos sem cauda nem garras; mas os diabos de Pangloss tinham garras e cauda, e as chamas eram direitas. Saíram em procissão assim vestidos, ouvindo ao mesmo tempo um sermão muito patético, e acompanhado de uma bela música em falsete baixo. Cândido foi açoitado ao ritmo da música do cântico; o biscainho e os dois homens que não comiam toucinho foram queimados, e Pangloss foi enforcado, contrariamente ao que se esperava. Nesse dia a terra voltou a tremer com fragor espantoso.
Cândido, aterrado, interdito, tresloucado, sangrando, palpitanto, dizia de si para si:
- Se este é o melhor dos mundos possíveis, como serão os outros? Ainda se se limitassem a açoitar-me, vá lá, que já o fui no país dos búlgaros; mas, ó meu querido Pangloss, ó filósofo incomparável, por que vos vi enforcar sem haver razão? Ó meu querido anabaptista, homem bom entre os bons, por que vos vi afogar dentro do porto? Ó menina Cunegundes, a pérola das raparigas, era preciso que vos esventrassem?

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald



Ás nove horas da manhã de um dia, em fins de Junho, o aparatoso automóvel de Gatsby apareceu, sem eu contar, a subir aos solavancos o pedregoso caminho de acesso à minha casa e disparou uma melodiosa buzinadela em três notas. Era a primeira vez que me visitava, apesar de eu já ter ido a duas festas dele, feito frequente uso da sua praia privativa.
- Então, bom dia, meu velho! Como você vai almoçar hoje comigo, pensei que era mais lógico irmos juntos no carro.
Equilibrava-se de pé, apoiado no tablier do carro com essa desenvoltura do movimento tão peculiar aos americanos - que provém, suponho eu, da ausência de trabalhos pesados na juventude mas, mais do que isso, da graça natural dos nossos esporádicos exercícios nervosos. Esta qualidade ressaltava constantemente da sua convencional maneira de ser sob a forma de inquietude. Nunca estava completamente parado; havia sempre nele um pé a bater ou uma mão a abrir e a fechar de impaciência.
Viu-me a olhar com admiração para o seu automóvel.
- É lindo, não é, meu velho? - Saltou para fora para me deixar ver melhor. - Ainda não o tinha visto?
Já o tinha visto. Toda a gente o tinha visto. Era de uma cor de creme-vivo, a brilhar de niqueis por todo o lado, cortando aqui e além, no sentido do seu monstruoso comprimento, de triunfais protuberâncias de chapeleiras, lancheiras, caixas de ferramentas e pára-brisas em socalcos labirínticos que reflectiam uma dúzia de sóis. Sentados por detrás de muitas camadas de vidro numa espécie de estufa de couro verde, partimos para a cidade.
Tinha falado com ele talvez uma meia dúzia de vezes no mês anterior, e descoberto, para meu desapontamento, que ele pouco tinha a dizer. Assim, a minha primeira impressão acerca dele, a de que era uma pessoa de certa categoria social indefinida, tinha-se desvanecido gradualmente e ele tornara-se muito simplesmente o proprietário de uma requintada «estalagem» mesmo ao lado da minha casa.
E veio então este desconcertante passeio. Ainda nós não tínhamos chegado à aldeia de West Egg e já Gatsby começava a deixar inacabadas as suas elegantes frases e a dar palmadas algo indecisas no joelho das calças do seu fato cor de caramelo.
- Olhe cá, meu velho - irrompeu inesperadamente -, afinal qual é a sua opinião a meu respeito?
Um pouco perturbado, dei início às evasivas generalidades que uma pergunta destas merece.
- Bem, vou então contar-lhe alguma coisa da minha vida - interrompeu ele. - Não quero que fique com a impressão errada que forçosamente causa todas as histórias que por aí se contam a meu respeito.
Estava, portanto, consciente das bizarras acusações que condimentavam a conversa nos seus salões.
- Juro-lhe por Deus que o que vou dizer-lhe é a pura verdade. - Ergueu subitamente a mão direita para o céu, a invocar o testemunho e a justiça divinos. - Sou o único descendente vivo de uma abastada família do Middle West. Fui criado na América, mas educado em Oxford, porque foi aí que, durante muitos anos, todos os meus antepassados foram educados. É tradição de família.
Olhou-me de soslaio - e percebi então porque é que Jordan Baker estava convencida de que ele mentiu. A frase «educado em Oxford» saiu-lhe à pressa, imperceptível ou engasgada, como se já o tivesse afligido antes. E, com esta dúvida, todas as suas declarações caíram por terra e fiquei a matutar se, no fim de contas, não haveria mesmo algo um pouco sinistro acerca dele.
- De que parte do Middle West? - perguntei casualmente.
- São Francisco.

domingo, 20 de março de 2011

Albert Caeiro - Quando Vier a Primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

sexta-feira, 18 de março de 2011

William Shakespeare - Macbeth



Enter Macbeth, Seyton, and Soldiers, with drum and colours.

MACBETH: Hang out our banners on the outward walls,
The cry is still, they come: our Castle's strength
Will laugh a siege to scorn: here let them lie,
Till famine and the ague eat them up:
Were they not forc'd with those that should be ours,
We might have met them dareful, beard to beard,
And beat them backward home. What is the noise?

A cry within of women.

SEYTON: It is the cry of women, my good Lord.
MACBETH: I have almost forgot the taste of fears:
The time has been, my senses would have cool'd
To hear a night-shriek, and my fell of hair
Would at a dismal treatise rouse, and stir
As life were in't. I have supp'd full with horrors,
Direness familiar to my slaughterous thoughts
Cannot once start me. Wherefore was that cry?
SEYTON: The Queen, my Lord, is dead.
MACBETH: She should have died hereafter;
There would have been a time for such a word:
To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
Creeps in this petty face from day to day,
To the last syllable of recorded time:
And all our yesterdays, have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle,
Life's but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury
Signifying nothing.

Jane Eyre (2011)

Com mais de 20 adaptações tanto no pequeno como no grande ecrã, "Jane Eyre" de Charlotte Brontë dificilmente passa por uma ideia original no nosso tempo, no entanto uma nova adaptação deste clássico estreou recentemente nos Estados Unidos e chega a Portugal no próximo dia 21 de Abril. O filme tem recebido críticas bastante positivas, principalmente devido à interpretação de Mia Wasikowska, a nova actriz sensação de Hollywood que protagoniza esta versão.



Do you think I am an automaton? — a machine without feelings? and can bear to have my morsel of bread snatched from my lips, and my drop of living water dashed from my cup? Do you think, because I am poor, obscure, plain, and little, I am soulless and heartless? You think wrong! — I have as much soul as you — and full as much heart! And if God had gifted me with some beauty and much wealth, I should have made it as hard for you to leave me, as it is now for me to leave you. I am not talking to you now through the medium of custom, conventionalities, nor even of mortal flesh: it is my spirit that addresses your spirit; just as if both had passed through the grave, and we stood at God's feet, equal — as we are!

Deuses Americanos - Neil Gaiman


 Enquanto saiam do Illinois mais tarde nessa noite, Sombra fez a sua primeira pergunta a Quarta-Feira. Viu o sinal de Bem-vindo ao Winsconson e disse:
- Então, quem eram os tipos que me apanharam no parque de estacionamento? O Senhor Madeira e o Senhor Pedra? Quem eram?
As luzes do carro iluminavam a paisagem de Inverno. Quarta-Feira tinha anunciado que não iriam por auto-estradas porque ele não sabia de que lado estavam as auto-estradas, por isso Sombra andava apenas em estradas secundárias. Ele não se importava. Nem sequer tinha a certeza se Quarta-Feira era maluco.
Quarta-Feira resmungou:
- Apenas espectros. Membros da oposição. Chapéus negros.
- Acho, - disse Sombra - que eles acham que são chapéus brancos.
- Claro que acham. Nunca houve uma guerra verdadeira que não fosse travada entre dois grupos de pessoas que tinham a certeza de que estavam certas. As pessoas verdadeiramente perigrosas acreditam que estão a fazer o que quer que seja simplesmente porque é, sem dúvida, a coisa certa. E é isso que as torna perigosas.
- E você? - perguntou Sombra. - Porque está a fazer o que está a fazer?
- Porque quero, - disse Quarta-Feira. E depois sorriu. - Por isso está tudo bem.
Sombra disse:
- Como é que vocês escaparam? Ou será que escaparam?
- Escapámos, - disse Quarta-Feira. - Ainda assim foi por pouco. Se não tivessem parado para te agarrar, podiam ter-nos levado a todos. Convenceu muita da gente que estava na dúvida de que posso não estar completamente maluco.
- Então como escapou?
Quarta-Feira abanou a cabeça.
- Não te pago para fazeres perguntas, - disse ele - Já te tinha dito.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Os Maias - Eça de Queirós



Carlos murmurou: «Coitada!» E foi tudo o que disseram sobre a grande paixão romântica do Ega.
Carlos, no entanto, fora examinar, junto da janela, um quadro que pousava no chão, para ali esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurça na mão, os grandes olhos árabes na face triste e pálida que o tempo amarelara mais. Colocou-o em cima de uma cómoda. E atirando-lhe uma leve sacudidela com o lenço:
- Não há nada que me faça mais pena, do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.
Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrara, se, nestes últimos anos, ele não tivera a ideia, o vago desejo de voltar para Portugal...
Carlos considerou Ega com espanto. Para quê? Para arrastar os passos tristes desde o Grémio até à Casa Havanesa? Não! Paris era o único lugar da Terra congénere com o tipo definitivo em que ele se fixara: «o homem rico que vive bem». Passeio a cavalo no Bois; almoço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no clube com os jornais, um bocado de florete na sala de armas; à noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouville no Verão, alguns tiros ás lebres no Inverno; e através do ano as mulheres, as corridas, certo interesse pela ciência, o bricabraque, e uma pouca de blague. Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável.
- E aqui tens tu uma existência de homem! Em dez anos não me tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o faetonte na estrada de Saint-Cloud... Vim no «Figaro».
Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
- Falhámos a vida, menino!
- Creio que sim.... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «Vou ser assim, porque a beleza está em ser assim.» E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Ás vezes melhor, mas sempre diferente.
Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de Inverno. Carlos pôs também o chapéu: e desceram pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panóplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residência eclesiástica, com as suas paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.
Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:
- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!

Aventura é como quem diz...

Este blog funciona como uma continuação de um outro (http://umaventuraliteraria.blogs.sapo.pt/).Como amante que sou da leitura, um dos meus grandes prazeres é visitar livrarias e folhear os muitos livros para ter um gostinho de como este será. Para além de servir como uma espécie de versão digital dessa experiência, este blog também é uma espécie de álbum com os melhores momentos de alguns dos meus livros preferidos. Para além disso também vou postar algumas cenas de filmes baseados em livros que me parece que melhor capturaram o seu espírito, assim como entrevistas e trailers, tendo sempre por base os livros.