O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

segunda-feira, 30 de julho de 2012

"A Noiva Romanov" - Robert Alexander


Ficámos em choque a ver os cossacos percorrerem a multidão até ao fim e em seguida, como uma grande águia, voltarem para trás. Ao verem que não tínhamos fugido, foi dada uma ordem. Num rápido movimento, os cossacos desembainharam as chachki - as suas famosas espadas - e galoparam pelo meio de nós ainda mais depressa do que antes.
- Gik! Gik! - gritavam.
Era uma visão deslumbrante, aqueles brutos a cavalo, o metal prateado das suas lâminas a brilhar ao sol dourado de Inverno. Afastámo-nos ainda mais para o lado e, como tal, não houve de novo qualquer incidente, quando eles passaram aos gritos e a brandirem as suas espadas. Atravessaram a pequena ponte e desapareceram atrás da linha de soldados.
De imediato, quase instintivamente, a grande maioria de nós, muitos milhares, voltou a inundar a rua como uma torrente a cair num vazio. O meu coração batia como uma locomotiva, e, embora eu soubesse que devia levar a minha mulher grávida para longe dali, não fui capaz de me conter.  Éramos bons, éramos poderosos, nós, trabalhadores, tão desejosos de uma vida boa, e de repente demos os braços, lado a lado, unidos no nosso desespero. O canto irrompeu de todos nós - não me recordo da canção, era algo religioso, com certeza -, e, mais depressa do que nunca, investimos, os que vinham atrás a empurrarem-nos para a frente. Quando estávamos a menos de duzentos metros da linha de soldados ajoelhados, ouvi o corneteiro mandar disparar. Mas nada aconteceu. Ouvi-o de novo, aquele som no ar rarefeito do Inverno. Depois uma terceira vez, mas escusadamente, pois éramos todos irmãos e irmãs, soldados e trabalhadores. Por fim ouvi o grito estridente de um oficial a ordenar aos seus homens que disparassem sobre nós. E eles abriram fogo, o estalido seco das balas a fender o ar. Mas as espingardas que tinham estado apontadas para nós, encontravam-se nessa altura levantadas para os céus, disparando bem alto. Essa foi a primeira rajada. Depois veio outra ordem, e a segunda rajada também foi para o ar. E, não sei como, nessa altura já estávamos a correr, a reunirmos força e coragem, os nossos ícones religiosos e faixas e a imagem do czar bem erguidos. E lembro-me de olhar para os soldados ajoelhados, de ver o medo nos seus rostos jovens. Eram rapazes, trazidos de alguma caridade da província, talvez Pskpv. Rapazes apavorados que, confrontados com esta multidão, baixaram depois as armas e, desta vez obedecendo às ordens, fizeram pontaria à queima-roupa.
De novo, aquele estalido sexo, uma e outra vez.
Um grito de dor inacreditável elevou-se da multidão, unido a princípio, depois destroçado num grito aqui, noutro ali. Um homem menos de dez passos à minha frente caiu de repente no chão, a sua faixa religiosa tombando e rasgando-se aos pedaços sob os pés. Tentei parar, mas não pude, tão grande era a força da massa atrás de nós. Ao olhar para o padre Gapon, vi o horror nos seus olhos e em seguida vislumbrei dois dos seus guarda-costas, os que estavam à frente dele, a tropeçarem e a caírem. E, mesmo em cima da minha Shura, algo explodiu num milhão de pedaços e ela gritou...gritou, quando o retrato do Czar-Batuchka foi crivado de balas.
-Shura! - gritei para o céu.
Houve outra rajada de balas, quando os soldados dispararam na nossa direcção, e todos nos atirámos ao chão como um só, homem em cima de mulher, em cima de avô, em cima de criança. Estendido, tentei enterrar-me na neve, quando os tiros foram disparados uma e outra vez, até os carregadores ficarem vazios.
Finalmente, as armas silenciaram-se. Durante um breve momento, nada aconteceu. Depois surgiu uma coisa horrível, gritos e soluços à minha volta. Levantando a cabeça, olhei em volta e vi um tapete de cadáveres. Uma menina gritava aos céus, enquanto estendia as mãos para a mãe espezinhada. Um velho tentou levantar-se, tropeçou e caiu novamente. Voltando-me e olhando para trás, vi muitos de nós a fugirem, metendo-se pelas ruas laterais e a correrem para salvar as próprias vidas.
Mas a minha querida mulher estava ali deitada, virada para baixo e ao alcance da minha mão, e toquei nela, gritando:
- Shura! Shura! Anda, temos de fugir! Levanta-te!
Pus-me em pé o melhor que pude e puxei-a pelo braço. Mas porque não fazia ela qualquer movimento, porque não tentava fugir? Porque não se levantava?
- Shura! - gritei. - Shura, levanta-te!
Foi nesse momento, claro, que vi que a neve sobre a qual a minha querida mulher estava deitada já não era branca. Não, era de um carmesim quente e fumegante, e ela estava deitada ali em cima, num mar vermelho de neve que crescia rapidamente, e então dei-me conta de que também eu estava de pé na poça funda do seu sangue.
E, atrás de mim, um homem chorava como uma criança, balbuciando:
- Deus abandonou-nos e também...também o czar!


"A Noiva Romanov" é o terceiro romance do autor Robert Alexander e, à semelhança das suas obras anteriores ("The Kitchen Boy - Os últimos dias dos Romanov" e "A Filha de Rasputine") faz um retrato fictício dos derradeiros anos da Rússia Imperial. O livro foi publicado em 2008 e os seus acontecimentos são contados na primeira pessoa pela grã-duquesa Isabel, irmã da imperatriz da Rússia, e por Pavel, um operário moscovita que perde a mulher no Domingo Sangrento e que se torna revolucionário.

"Bel Ami" - Guy de Maupassant


Com essa palavra, o nome do morto saiu-lhe da boca, surpreendeu-o como se alguém o tivesse gritado do fundo duma moita, e Jorge calou-se subitamente, retomado por essa doença estranha e teimosa, por essa irritação ciumenta, mordente, invencível, que lhe estragava a vida havia algum tempo. Passado um minuto, perguntou:
- Vieste aqui, algumas vezes à noite, assim, com o Carlos?
- Sim, frequentemente - respondeu Madalena.
De súbito, Jorge teve vontade de voltar para casa, uma vontade nervosa que lhe apertava o coração. A imagem de Forestier entrara-lhe, porém, no íntimo, possuía-o, estrangulava-o. Só podia pensar nele, falar dele. Perguntou com uma entoação malévola:
- Diz lá, Mada!
- Dizer o quê, meu amigo?
- Enganaste esse pobre Carlos?
Madalena murmorou, desdenhosa:
- Como te tornas aborrecido com essa seca.
O marido, porém, não abandonava a sua ideia:
- Vejamos, minha Madazinha, sê franca, confessa-o! Enganaste-o, diz? Confessa que o enganaste?
A mulher calou-se, chocada, como todas, quando lhes falam dessas coisas; mas Jorge insistiu, com obstinação:
- Apre! Se havia alguém com cara disso, era sem dúvida ele. Ah! Sim, sem dúvida! Gostaria muito de saber se Forestier o era. Hem? Que boa cachola para tinha para isso!
Pareceu-lhe que a mulher sorria, talvez a lembrar-se de qualquer coisa, e insistiu:
- Vamos! Diz lá. Que tem isso? Seria até muito engraçado, pelo contrário, contares-me, confessares que o tinhas enganado, confessares-mo a mim.
Estava ansioso, com efeito, com a esperança e a vontade de Carlos, o odioso Carlos, o morto detestado, o morto execrado, ter sido alvo desse vergonhoso ridículo. No entanto... no entanto, outra ansiedade, mais confusa, aguilhoava o seu desejo de saber. Repetiu:
- Mada, minha Madazinha, peço-te que mo digas. Ele bem o mereceu. Terias feito muito mal se não lhos tivesses posto. Vamos, Mada, confessa!
Madalena achava, então, sem dúvida, engraçada aquela insistência, pois ria, com uns risinhos secos, intermitentes. Jorge colocara os lábios muito próximo do ouvido de sua mulher e murmurava:
- Vamos...vamos...confessa-o.
Madalena afastou-se com um movimento brusco e declarou secamente:
- Pareces estúpido! Alguém responde a perguntas dessas?
Dissera isso num tom tão estranho que um arrepio de frio passou pelas veias do marido. Jorge ficou interdito, desorientado, um tanto sufocado, como se tivesse recebido um grande abalo moral.
O fiacre, nessa altura, dava a volta ao lago, onde o céu parecia ter semeado as suas estrelas. Dois cisnes, vagos, nadavam muito lentamente e eram apenas visíveis na sombra. Jorge gritou ao cocheiro:
-Regressemos!

Bel Ami é o segundo romance do autor francês Guy de Maupassant, publicado em 1885.
A história relata a subida ao poder corrupta do jornalista Georges Duroy que passa de um ex-combatente pobre a um dos homens mais poderosos de Paris. Duroy consegue isso através da manipulação de uma série de amantes poderosas, inteligentes e ricas.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

"O Alquimista" - Paulo Coelho


Meca é muito mais longe que as Pirâmides. Quando eu era jovem, preferi juntar o pouco dinheiro que tinha para começar esta loja. Pensava em ser rico algum dia, para ir a Meca. Passei a ganhar dinheiro, mas não podia deixar ninguém a cuidar dos cristais, porque os cristais são coisas delicadas. Ao mesmo tempo, via passar defronte da minha loja muitas pessoas que seguiam na direcção de Meca. Havia alguns peregrinos ricos, que iam com um séquito de criados e de camelos, mas a maior parte das pessoas era muito mais pobre do que eu era.
Todas iam e voltavam contentes, e colocavam na porta das suas casas os símbolos da peregrinação. Uma delas, um sapateiro que vivia de remendar as botas alheias, disse-me que tinha caminhado quase um ano pelo deserto, mas que ficava sempre mais cansado quando tinha de percorrer alguns quarteirões de Tânger para comprar couro.
- Por que não vai a Meca agora? - perguntou o rapaz.
- Porque Meca é o que me mantém vivo. E o que me faz aguentar todos estes dias iguais, estes copos calados nas prateleiras, o almoço e o jantar naquele restaurante horrível. Tenho medo de realizar o meu sonho, e depois não ter mais motivos para continuar vivo.
»Tu sonhas com ovelhas e com pirâmides. És diferente de mim, porque desejas realizar os teus sonhos. Eu queria apenas sonhar com Meca. Já imaginei milhares de vezes a travessia do deserto, a minha chegada à praça onde está a Pedra Sagrada, as sete voltas que devo dar em torno dela antes de tocá-la. Já imaginei quais as pessoas que estarão a meu lado, na minha frente, e as conversas e orações que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma grande decepção, então prefiro apenas sonhar.
Nesse dia, o Mercador deu permissão ao rapaz para construir a estante. Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.



O Alquimista é um best-seller do escritor brasileiro Paulo Coelho.
Este livro narra a história de um jovem pastor chamado Santiago que, após ter um sonho repetido, decide partir em uma longa viagem da Espanha ao Egitpo, pois, segundo o sonho, é lá, junto às pirâmides, onde ele irá encontrar um tesouro enterrado. Ao iniciar sua jornada ele se vê lançado em uma imprevisível busca por esclarecimento sobre os grandes mistérios que acompanham a humanidade desde o início dos tempos; baseada na história das Mil e Uma Noites, "The Ruined Man who Became Rich Again through a Dream".
O livro foi traduzido para mais de 73 línguas, tendo vendido mais de 65 milhões de cópias em todo mundo.

domingo, 1 de julho de 2012

"Eloisa to Abelard" (a.k.a. "Eternal Sunshine of the Spotless Mind") - Alexander Pope



(...)

How happy is the blameless vestal's lot!
The world forgetting, by the world forgot.
Eternal sunshine of the spotless mind!
Each pray'r accepted, and each wish resign'd;

Labour and rest, that equal periods keep;
"Obedient slumbers that can wake and weep;"
Desires compos'd, affections ever ev'n,
Tears that delight, and sighs that waft to Heav'n.
Grace shines around her with serenest beams,
And whisp'ring angels prompt her golden dreams.
For her th' unfading rose of Eden blooms,
And wings of seraphs shed divine perfumes,
For her the Spouse prepares the bridal ring,
For her white virgins hymeneals sing,
To sounds of heav'nly harps she dies away,
And melts in visions of eternal day.

(...) 

Publicado em 1717, Eloisa to Abelard é um poema de Alexander Pope (1688-1744). É uma epístola heróica ao estilo de Ovídio inspirada pela história do século XII do amor ilícito de Héloise e do casamento secreto com o seu professor Pierre Abélard. Este era talvez o professor e filósofo mais popular de Paris e a história também inclui a vingança brutal da família dela que castra o professor, apesar de os dois estarem casados.