O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"A Relíquia" - Eça de Queirós


Corri ao quarto, a buscar essas doces «lembrancinhas» da Palestina. E ao regressar, sustentando pelas pontas um lenço repleto de devotas preciosidades, estaquei por trás do reposteiro ao sentir dentro o meu nome... Suave gozo! Era o inestimável Dr. Margaride que afiançava à titi com a sua tremenda autoridade:
- D. Patrocínio. eu não lho quis dizer diante dele... Mas isto agora é mais do que ter um sobrinho e ter um cavalheiro!
Isto é ter, de casa e pucarinho, um amigo íntimo de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Tossi, entrei. Mas a Sr.ª D. Patrocínio ruminava um escrúpulo ciumento. Não lhe parecia delicado para Nosso Senhor (nem para ela) que se repartissem estas relíquias mínimas antes de lhe ser entregue a ela, como senhora e como tia, na capela, a grande relíquia...
- Porque saibam os meus amigos - anunciou ela com o seu chatíssimo peito impando de satisfação - que o meu Teodorico trouxe-me uma santa relíquia, com que eu me vou apegar nas minhas aflições, e que me vai curar dos meus males!
- Bravíssimo! - gritou o impetuoso Dr. Margaride. - Com quê, Teodorico, seguiu-se o meu conselho? Esgravataram-se esses sepulcros?... Bravíssimo! É de generoso romeiro!
- É de sobrinho, como já o não há no nosso Portugal! - acudiu o padre Pinheiro junto ao espelho, onde estava a língua saburrenta...
- É de filho, é de filho! - proclamava o Justino, alçado na ponta dos botins.
Então o Negrão, mostrando os dentes famintos, babujou esta coisa vilíssima:
- Resta saber, cavalheiros, de que relíquia se trata.
Tive sede, sede ardente do sangue daquele padre! Trespassei-o com dois olhares mais agudos e faiscantes do que espetos em brasa.
- Talvez Vossa Senhoria, se é um verdadeiro sacerdote, se atire de focinho para baixo rezar quando aparecer aquela maravilha!...
E voltei-me para a Sr.ª D. Patrocínio, com a impaciência de uma nobre alma ofendida que carece reparação:
- É já, titi! Vamos ao oratório! Quero que fique tudo aqui assombrado! Foi o que disse o meu amigo alemão: «Essa relíquia, ao destapar-se, é de ficar uma família inteira assombrada!...»
Deslumbrada, a titi ergueu-se de mãos postas. Eu corri a prover-me de um martelo. Quando voltei, o Dr. Margaride, grave, calçava as suas luvas pretas...E atrás da Sr.ª D. Patrocínio, cujos cetins faziam no sobrado um ruge-ruge de vestes de prelado, penetrámos no corredor onde o grande bico de gás silvava dentro do seu vidro fosco. Ao fundo, a Vicência e a cozinheira espreitavam com os seus rosários na mão.
O oratório resplandecia. As velhas salvas de prata, batidas pelas chamas das velas de cera, punham no fundo do altar um brilho branco de glória. Sobre a candidez das rendas lavadas, entre a neve fresca das camélias - as túnicas dos santos, azuis e vermelhas, com o seu lustre de seda, pareciam novas, especialmente talhadas nos guarda-roupas de Céu para aquela rara noite de festa... Por vezes o raio de uma auréola tremia, despendia um fulgor, como se na madeira das imagens corressem estremecimentos de júbilo. E na sua cruz de pau-preto, o Cristo, ríquissimo, maciço, todo de ouro, suando ouro, sangrando ouro, reluzia preciosamente.
- Tudo com muito gosto! Que divina cena! - murmurou o Dr. Margaride, delicado na sua paixão do grandioso.
(...)
Acordando do seu langor, trémula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar: devotamente desatou o nó do mastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo... Uma brancura de linho apareceu... A titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente - e sobre a ara, por entre os santos, em cima das camélias, aos pés da cruz, espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!
A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor, enxovalhada pelos meus braços, com cada prega fedendo a pecado! A camisa de dormir da Mary!