O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

domingo, 27 de dezembro de 2015

Deixa o Grande Mundo Girar - Colum McCann

     

    O porteiro ligou-lhe e ela desceu as escadas a correr, saiu para a rua e pagou ao motorista de táxi. Olhou para baixo para os meus pés - uma pequena barreira de sangue tinha crescido na orla do calcanhar e a algibeira do meu vestido estava rasgada - e alguma coisa deu a volta dentro dela, alguma chave, o seu rosto enterneceu-se. Pronunciou o meu nome e, por um momento, senti-me incomodada. Rodeou-me com o braço e levou-me directamente para dentro do elevador e pelo corredor em direcção ao quarto. Os cortinados estavam corridos. Emanava dela um cheiro forte a cigarros, misturado com perfume fresco. - Aqui - disse ela, como se fosse o único lugar no mundo. Sentei-me sobre a roupa da cama limpa, sem uma ruga, enquanto ela punha um banho a correr. O esparrinhar da água. - Pobrezinha! - chamou ela. Havia no ar um odor a sais perfumados.
    Vi o meu reflexo no espelho da cama. O rosto estava com aspecto bafurido e exausto. Ela estava a dizer alguma coisa, mas a sua voz foi envolvida pelo ruído da água.
    O outro lado da cama estava amarrotado. Assim, ela tinha estado deitada, talvez a chorar. Tive vontade de me sentar em cima da sua marca, aumentando-a três vezes mais. A porta abriu-se lentamente. Claire estava a sorrir. - Vamos pôr-te em forma - disse ela. Veio até à beira da cama, pegou no meu cotovelo, conduziu-me à casa de banho, sentou-se num banco de madeira junto à banheira. Inclinou-se e experimentou a temperatura da água com o nó do dedo. Descalcei as meias. Pequenos pedaços de pele saíram dos meus pés. Sentei-me no extremo da banheira e passei as pernas para o outro lado. A água fez arder. Escorreu sangue dos meus pés. Como um pôr do sol a desvanecer-se, o brilho avermelhado a dispersar-se dentro de água.
    Claire colocou uma toalha branca no meio do chão da casa de banho, aos meus pés. Deu-me alguns pensos rápidos, com o painel protector já tirado. Não pude deixar de pensar que ela tinha vontade de secar-me os pés com o seu cabelo.
    - Eu estou bem, Claire - disse-lhe eu.
    - Que é que te roubaram?
    - Apenas a minha bolsa.
    Senti-me invadida pelo receio: ela podia pensar que eu queria apenas o dinheiro que me havia oferecido para ficar, receber a minha recompensa, a minha bolsa de escrava.
    - Não tinha dinheiro.
    - De qualquer forma, vamos chamar a polícia.
    - A polícia?
    - Porque não?
    - Claire...
    Ela olhou para mim sem compreender, e depois um entendimento atravessou os seus olhos. As pessoas acham que conhecem o mistério de se viver dentro da nossa pele. Não conhecem. Não há ninguém que saiba a não ser a pessoa que acarreta com isso dentro de si.
    - Queres saber o pior nisto? - disse eu.
    - O que foi?
    - Ela chamou-me gorda.

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