O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

segunda-feira, 12 de março de 2012

O Evangelho Segundo Jesus Cristo - José Saramago


Como sempre desde que o mundo é mundo, para cada um que nasce, há outro que agoniza. O de agora, falamos do que está à morte, é o rei Herodes, que sofre, além do mais e pior que se dirá, de uma horrível comichão que o põe às portas da loucura, como se as mandíbulas miudinhas e ferozes de cem mil formigas lhe estivessem roendo o corpo, infatigáveis. Depois de terem experimentado, com nenhumas melhoras, quantos bálsamos se usaram até hoje em todo o orbe conhecido, sem exclusão do Egipto e da índia, os médicos reais, já de cabeça perdida ou, para ser mais exacto, com medo de perdê-la, lançaram-se a compor banhos e mezinhas ao acaso, misturando em água ou óleo quaisquer ervas ou pós de que alguma vez se tivesse dito algum bem, mesmo sendo contrárias as indicações da farmacopeia. O rei, possesso de dor e furor, com espuma a saltar-lhe da boca como se o tivesse mordido um cão raivoso, ameaça que os fará crucificar a todos se não descobrirem rapidamente remédio suficiente para os seus males, que, como já foi antecipado, não se limitam ao ardor insofrível da pele e também ás convulsões que frequentemente o derrubam, o atiram ao chão, fazendo dele um novelo retorcido, agónico, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, as mãos rasgando as vestes, por baixo das quais as formigas, multiplicando-se, prosseguem o devastador trabalho. O pior, o pior verdadeiramente, é a gangrema que se tem manifestado nestes últimos dias, e esse horror sem explicação nem nome de que se fala em segredo no palácio, a saber, os vermes que infestam os órgãos genitais da real pessoa e que, esses sim, a estão devorando em vida. Os gritos de Herodes atroam as salas e as galerias do palácio, os eunucos que o servem directamente não dormem nem descansam, os escravos de nível inferior fogem de encontrar-se no seu caminho. Arrastando um corpo que fede de putrefacção, apesar dos perfumes que leva embebidas as roupas e ungidos os cabelos pintados, a Herodes só o mantém vivo a fúria. Transportado numa liteira, rodeado de médicos e de guardas armados, percorre o palácio de um extremo a outro à procura de traidores, desde há muito que os vê, ou adivinha em toda a parte, e o seu dedo de súbito aponta, pode ser um chefe de eunucos que estava conquistando demasiada influência, ou um fariseu recalcitrante que anda protestando contra os que desobedecem à lei devendo ser os primeiros a respeitá-la, neste caso nem é preciso pronunciar um nome para saber de quem se trata, podem ser ainda os seus próprios filhos Alexandre e Aristóbulo, presos e logo condenados à morte por um tribunal de nobres à pressa convocado para essa sentença e não outra, ora, que outra coisa poderia ter feito este pobre rei se em alucinados sonhos via aqueles maus filhos avançando para ele de espada nua, e se, no mais abominável dos pesadelos, olhava, como num espelho, a sua própria cabeça cortada. Do fim terrível conseguiu livrar-se, agora pode contemplar tranquilamente os cadáveres daqueles que um minuto antes ainda eram herdeiros de um trono, os seus próprios filhos, culpados de conspiração, abuso e arrogância, mortos por estrangulamento.

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