O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"Boca do Inferno" - Ricardo Araújo Pereira


"Apelo à Inquietação"

     Sem querer ser alarmista, devo informar todos os leitores do seguinte: fomos recentemente colocados perante um escândalo política, e a nossa democracia pode estar em perigo. Quando anunciou ao país a data do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, Cavaco Silva produziu afirmações gravíssimas que, segundo creio, passaram até agora sem comentário. O presidente da República disse, com toda a desfaçatez, e cito: "é imprescindível que o debate decorra com serenidade e elevação." Ora, nenhum democrata pode admitir que o garante da democracia em Portugal venha deste modo limitar os direitos políticos de boa parte dos cidadãos. Se o debate sobre o aborto deve decorrer com serenidade e elevação, quase toda a gente que se pronuncia publicamente sobre o assunto vai ter de se calar. Até agora, o debate tem decorrido, regra geral, com bastante primarismo e gritaria. A julgar pelo barulho, o debate sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez opõe aborcionistas assassinos a beatos hipócritas. E Cavaco Silva acaba de excluir essa gente da discussão. Pergunto: quem sobra?
     Temo que não sobre ninguém. A comunicação social, por um problema técnico qualquer, tem dificuldade em captar discussões que sejam mantidas em voz baixa. Com serenidade e elevação, não vamos lá. A única maneira de o público tomar contacto com a opinião defendida por ambos os lados do debate é a barulheira. Padres serenos não aparecem na televisão. Mas padres encarniçados a pregarem contra partidos do sim em pleno altar porque essa gente que não respeita a vida devia ser abatida têm lugar no horário nobre. Activistas pró-aborto que discutem com elevação também aparecem pouco. Mas as que estão dispostas a explicar, aos gritos e à beira da apoplexia, porque é que este debate que opões gente séria a gente hipócrita deve decorrer com calma e sem maniqueísmos aparecem bastante mais.
     Há, nas declarações de Cavaco, outro problema: um plágio descarado da postura de Jorge Sampaio enquanto presidente da República. Apelar à serenidade é património político de Jorge Sampaio. Sampaio apelou à serenidade três ou quatro vezes por dia, ao longo dos dez anos em que foi presidente. Durante os dois mandatos de Sampaio, o país esteve mais sereno do que uma lesma. Creio que, em 2004, Sampaio apelou tanto à serenidade que o país chegou a adormecer durante dois ou três meses. E, quando acordou, Santana Lopes estava no poder. Cuidado, pois, com a serenidade.

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