O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"A Bruxa de Portobello" - Paulo Coelho


Athena parou diante de mim e repetiu o gesto de sempre: fechou os olhos, e abriu a boca para receber o corpo de Cristo.
     O Corpo de Cristo permaneceu nas minhas mãos.
     Ela abriu os olhos, sem entender exactamente o que estava a acontecer.
     — Conversamos depois — sussurrei.
     Mas ela não se movia.
     — Tem gente atrás de si na fila. Conversamos depois.
     — O que está a acontecer? — todos que estavam próximos puderam escutar a sua pergunta.
     — Conversamos depois.
     — Por que não me dá a comunhão? Não vê que me está a humilhar diante de todos? Não basta tudo aquilo que já passei?
     — Athena, a Igreja proíbe que pessoas divorciadas recebam o sacramento. Assinou os papéis esta semana. Conversamos depois — insisti mais uma vez.
     Como não se movia, fiz menção para que a pessoa atrás dela passasse à frente. Continuei a dar a comunhão até que o último paroquiano a tivesse recebido. E foi então que, antes de voltar ao altar, ouvi aquela voz.
     Já não era a voz da rapariga que cantava para adorar a Virgem, que conversava sobre os seus planos, que se comovia ao contar o que aprendera sobre a vida dos santos, que quase chorava ao dividir as suas dificuldades no casamento. Era a voz de um animal ferido, humilhado, com o coração repleto de ódio.
     — Pois maldito seja este lugar! — disse a voz. — Malditos sejam aqueles que jamais escutaram as palavras de Cristo, e que transformaram a sua mensagem numa construção de pedra. Pois Cristo disse: “vinde a mim os que estão agoniados, e eu os aliviarei”. Eu estou agoniada, ferida, e não me deixam ir até Ele. Hoje aprendi que a Igreja transformou estas palavras: vinde a mim os que seguem as nossas regras, e deixem os agoniados para lá!
     Ouvi uma das mulheres na primeira fila a dizer que se calasse. Mas eu queria ouvir, eu precisava de ouvir. Voltei-me e fiquei diante dela, com a cabeça baixa — era a única coisa que podia fazer.
     — Juro que jamais voltarei a pôr os pés numa igreja. Mais uma vez sou abandonada por uma família, e agora não são dificuldades financeiras, ou imaturidade de gente que casa cedo. Malditos sejam todos os que fecham a porta para uma mãe e um filho! Vocês são iguais àqueles que não acolheram a Sagrada Família, iguais ao que negou Cristo quando Ele mais precisava de um amigo!
     E, dando meia-volta, saiu aos prantos, com o filho nos braços. Eu terminei o ofício, dei a bênção final, e fui direto para a sacristia — naquele domingo não haveria confraternização com os fiéis, nem conversas inúteis. Naquele domingo, eu estava diante de um dilema filosófico: tinha escolhido respeitar a instituição, e não as palavras na qual a instituição é baseada.

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