O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"Expiação" - Ian McEwan



- Idiota! Já viste o que fizeste?

     Ele olhou para a água, depois voltou a olhar para ela e limitou-se a abanar a cabeça, enquanto punha uma mão à frente da boca. O gesto dele significava que assumia total responsabilidade, mas naquele momento ela odiou-o por aquela reacção tão desajustada. Ele olhou para a bacia e suspirou. Por momentos, pensou que ela ia dar um passo para trás e pisar a jarra, o que o levou a levantar a mão e a apontar, mas sem dizer nada. Em vez disso, começou a desabotoar a camisa. Ela percebeu imediatamente o que ele se preparava para fazer. Era intolerável. Tinha ido a sua casa e tinha tirado as meias e os sapatos - muito bem: ela mostrar-lhe-ia como era. Tirou as sandálias, desabotoou a blusa e despiu-a, desapertou a saia e tirou-a pelos pés e meteu-se na bacia. Ele ficou imóvel, de mãos nas ancas, a vê-la meter-se na água em roupa interior. Negar a ajuda dele, negar-lhe qualquer possibilidade de remediar o que tinha feito, seria a sua forma de o castigar. A temperatura inesperadamente baixa da água, que quase a deixou sem respiração, seria o castigo dele. Susteve o fôlego e mergulhou, deixando o cabelo aberto em leque à superficie. Afogar-se seria o castigo dele.

     Quando emergiu alguns segundos depois, com um caco em cada mão, ele teve o discernimento de não se oferecer para a ajudar a sair da água. Aquela ninfa branca e frágil, da qual a água corria em cascata, mais que do corpolento Tritão, colocou cuidadosamente os pedaços junto da jarra. Vestiu-se rapidamente, enfiando com dificuldade os braços molhados nas mangas de seda e prendendo a blusa desapertada com a saia. Pegou nas sandálias e enfiou-as debaixo do braço, pôs os cascos no bolso da saia e pegou na jarra. Fez tudo aquilo com movimentos selvagens e sem olhar para ele. Ele não existia, fora banido, e isso também era uma forma de o castigar. Ficou imóvel e em silêncio, a vê-la afastar-se descalça e com o cabelo escuro a ondular pesadamente sobre os ombros, encharcando-lhe a blusa. Depois voltou-se e olhou para a água, para o caso de lá ter ficado algum bocado da jarra. Era difícil ver porque a superfície da água ainda não tinha recuperado a tranquilidade, sendo, aliás «, a sua turbulência acrescida pelo espírito remanescente da fúria dela. Robbie pousou a mão sobre a água, como para a aquietar. Entretanto, Cecilia desaparecera dentro da casa.

Sem comentários:

Enviar um comentário