O livro é uma coisa espantosa. É um objecto plano, feito a partir de uma árvore . É montado com um conjunto de partes planas e flexíveis (que ainda são chamadas de "folhas") onde estão impressos rabiscos de pigmento preto. Basta dar-lhe uma olhada e começámos a ouvir a voz de outra pessoa, talvez de alguém que já morreu há milhares de anos. O seu autor fala através dos milénios de forma clara e silenciosa, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas, que junta pessoas, cidadãos de outras épocas, que nunca se conheceram. Os livros quebram as correntes do tempo e são a prova de que os humanos conseguem fazer magia. - Carl Sagan

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"A Tia Marquesa" - Simonetta Agnello Hornby


Os cabelos encaracolados de Constanza faziam-lhe cócegas no pescoço por baixo da barba. «Esta é diferente, é a a melhor. Os filhos de Constanza serão a salvação do sangue da mãe.» Enterneceu-se ao pensar na mulher. Constanza abriu os olhos e olhou-o de baixo para cima. Segurava-a com firmeza, as mãos sobre o baixo-ventre, e compreendia assim a sua sensibilidade animal às reacções dos outros, mesmo aos pensamentos. «Daqui o sangue Safamita correrá em homens e mulheres de valor», pensava. «Esta deve controlar o seu património, só ela.»
     «Papá, não gosto de estar ao colo do padre Puma: devo continuar a estar para ir para o Paraíso?» Constanza tinha falado com uma vozinha muito fraca, parecia estar a dormir.
     «Não, não deves. Diz-lho», respondeu o pai.
     «Já lhe disse, mas ele diz que é assim que se aprende a receber o corpo de Cristo. É um segredo. Não gosto do padre Puma. Tenho que o fazer?»
     «Não, não é preciso», respondeu o pai. Um suor novo escorria-lhe das têmporas, da testa, do nariz e enfiava-se, quente e salgado, por entre os lábios. Tinha que saber.
     «Onde te toca?»
     «Aqui», disse Constanza, dirigindo-lhe a mão com a sua - pequena, ossuda - para a virilha. «Magoa-me.»
     «Isso não se faz, diz-to o teu pai», afirmou. «Diz-lhe que não é preciso fazer isso para a primeira comunhão.»
     «Mas ele diz que se faz e que é um segredo. O que faço amanhã quando ele vier?» Constanza estava anciosa.
     O pai tinha dificuldade em controlar-se, a ira inchava-lhe os músculos. Doíam-lhe. «Não te preocupes, Constanza. Podes sempre confiar os teus segredos ao papá, eu não os conto a ninguém, nem sequer à mamã. Isto fica só para nós os dois e basta. Eu falo com o padre Puma. Amanhã não virá ao palacete. Estás pronta para a primeira comunhão e não precisas mais de catequese, e depois aliás temos de ir todos a Palermo para acompanhar Stefano ao colégio.»

Sem comentários:

Enviar um comentário